O acesso a programas como o Alcance possibilita transformar narrativas e realidades
Por Izabella de Souza
Comecei um novo ciclo recentemente, o que, para mim, é motivo de muita reflexão. A vida mudou rapidamente de 2019 para cá, e confesso que sinto precisar de um tempo para desacelerar e compreender. Parece-me que a qualquer momento vou acordar dessa realidade que, apesar de muito privilegiada dentro da sociedade inequitativa em que vivemos, ainda não é um lugar de chegada, mas de construção do que eu quero ser e do que ainda quero fazer. Aos 31, posso dizer que trabalho hoje para que pessoas, especialmente as de grupos historicamente oprimidos no Brasil, também possam experimentar algo que estou vivenciando: realizar todos os seus sonhos. Trabalhando com o Alcance, iniciativa da Fundação Lemann, acompanho pessoas pretas, pardas e indígenas vivendo, como eu, o sonho de poder concluir um mestrado em uma universidade no exterior. Em projetos como o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Economia Social (LEPES) da USP, tenho o privilégio de trabalhar na co-construção de uma escola pública acolhedora, e no desenvolvimento socioemocional de juventudes.
Vivo uma interseccionalidade em mim: cresci na periferia de São Paulo, em um corpo feminino preto, parte de uma família em vulnerabilidade socioeconômica. Poder ser a primeira do meu núcleo familiar, assim como muitas outras pessoas, a concluir o ensino superior, desafia crenças que meus próprios professores de ensino básico tinham sobre mim – segundo eles, alguém como eu jamais iria à universidade, ainda mais uma renomada. É um desafio também para quem já lidou com a violência policial, que ainda encontra apenas corpos pretos e periféricos; para quem não tem referências que endossam o coro dos conselhos dos Racionais MC’s: "É necessário sempre acreditar que o sonho é possível/ Que o céu é o limite e você, truta, é imbatível". Atuar nos projetos em que trabalho hoje é um ato pessoal de revolução para tornar equitativo o acesso a oportunidades que mudam narrativas e realidades.
Foi por meio do acesso a oportunidades que me encontrei no agora. Concluí uma graduação usando o FIES e o ProUni. Fiz um intercâmbio profissional, inclusive, usando o reembolso da universidade referente ao FIES. Retornei dessa viagem convicta de que resolução de conflitos e a educação eram os temas que me moviam, e que deveriam andar juntos. E, por isso, me inscrevi no Alcance, mesmo acreditando que eu não passaria, mas ciente de que se eu já tinha o ‘não’, no máximo, eu ouviria um ‘sim’. Na época, o programa se chamava Ponte de Talentos, e era coordenado e operacionalizado pelo Education USA. Tive a mentoria e o apoio de pessoas que acreditavam em mim e no meu potencial, muitas vezes mais do que eu mesma, o que, infelizmente, não é raro quando falamos de populações historicamente oprimidas. Foi esse programa que me viabilizou um mestrado e uma especialização em uma das melhores universidades do mundo, e fez tornar o sonho possível – e vem daí uma sensação de “despertar”.
Mais do que participar do programa, o aprendizado maior sobre a potência dele veio ao trabalhar com muitas pessoas, entre elas, Anna Laura Schmidt e Guilherme Barros, no redesenho da iniciativa. Os dois me convidaram para repensar a segunda edição, quando a iniciativa passou a se chamar Alcance. Mais do que desenvolver e por em prática habilidades, esse trabalho me permitiu pensar com profundidade nas diversas esferas desse aquilombamento, que não muda só realidades individuais, mas de famílias e comunidades inteiras. Eu tenho tatuado um padrão africano, abusua ye dom, que significa "a nossa comunidade é a extensão da nossa família e uma força a ser reconhecida". Para mim, o que temos feito com o Alcance significa isso, ainda mais quando temos a chance de nos reunir nos Encontros Anuais da Fundação Lemann. Trilhar a jornada de um mestrado na Universidade de Columbia, participar do Alcance e ouvir pessoas envolvidas com o programa, tudo isso me ajudou a repensar as práticas no redesenho, gestão e métricas do programa, sempre aprimorando as vivências de quem participa dele. Atuar no Alcance me fortaleceu e, muitas vezes, me motivou a seguir enquanto estava no exterior, me estimulando a resistir e ser autêntica, em diversos momentos, em ambientes extremamente elitizados e com pouca ou nula representatividade da pluralidade das populações brasileiras.
Poder vivenciar tudo e tão intensamente me deixa ainda em êxtase e, por isso, me leva a momentos de introspecção e reflexão. Ainda assim, eu não mudaria nada nessas experiências – elas me permitem poder sonhar novamente, ao mesmo tempo em que cumpro o que, para mim, é um objetivo de vida: poder ver as nossas populações terem acesso a oportunidades, realizarem sonhos e serem o que elas quiserem. Não é uma jornada fácil e, apesar do esforço e dedicação, nem sempre os resultados dependem da gente, principalmente em uma sociedade ainda desigual. Mas, se você não acreditar em você e tentar, nada vai acontecer. O Emicida já soltou que somos as maiores defensoras de nossos sonhos na Terra, e é verdade: o corre é todo nosso. Até agora, isso tudo foi o que a Iza que subia a Avenida Guapira vendendo salgado no isopor conseguiu, e é isso que eu espero que você que me lê acredite: que o rap diário da perifa não mente e, ainda que pareça que você está dando murro em ponta de faca contra um mundo e um sistema, você não está só e não há só uma trilha. A gente voa em comunidade. O Alcance foi uma parte significativa do meu caminho, é e será ainda o de muita gente e, se você sentir que é isso, ele pode ser o seu.